Estudos e teorias: entendendo os games

É difícil falar sobre a parte, digamos, acadêmica do assunto sem ficar técnico demais, mas vamos tentar. No livro How Computer Games Help Children Learn (“Como jogos de computador ajudam crianças a aprender”, em português, sem edição brasileira, infelizmente), de 2006, o pesquisador David Williamsom Shaffer busca outro autor, o especialista em mídia Marshall McLuhan, para ilustrar um conceito muito interessante: segundo ele, um conteúdo é como um pedaço suculento de carne que um ladrão usa para distrair um cão de guarda. Traduzindo, isso significa que qualquer tecnologia, seja ela atual ou antiga, não é nem boa e nem ruim em sua base — mas ela pode, sim, ser utilizada tanto para o bem quanto para o mal. Simples, não? Podemos aplicar isso à televisão, aos celulares, aos computadores e aos videogames também. Que possamos ler e escrever é mais poderoso do que o conteúdo de qualquer livro: o que importa é que consigamos aprender com essa atividade (apesar de existirem livros ruin e até nocivos). A mesma consideração vale para os jogos eletrônicos. Shaffer comenta no livro que, atualmente, a educação que a maior parte das escolas oferece pode até ensinar o básico, como matemática, geografia, história ou física, mas falha ao não passar conhecimentos essenciais para que os alunos possam resolver problemas complexos do dia-a-dia mais tarde, seja no trabalho, nas relações sociais ou até mesmo em casa, por exemplo, no lidar com as contas. O autor conclui então que os computadores e videogames conseguem nos apresentar a poderosas simulações do mundo real, de maneria lúdica e acessível, ensinando tanto crianças quanto adultos a executar atividades às quais não teríamos acesso de outra maneira. Quem de nós, afinal de contas, sem estudar arquitetura e mexer em programas de renderização complexos, poderia projetar uma casa totalmente mobiliada do zero se não em games como The Sims? A tecnologia, no fim das contas, mudou os significados de saber algo e, mais importante, de saber fazer algo. O potencial de ensino que isso trouxe à sociedade é inegável — porém, é claro, não está livre de problemas. Comentaremos, agora, um pouco mais sobre a parte benéfica da coisa.

Benefícios dos jogos para crianças

Shaffer, baseado nas ideias que comentamos acima, traz um exemplo bem interessante de como os jogos podem ter muitos benefícios ao aprendizado das crianças: no caso, o exemplo é o game Roller Coaster Tycoon, onde o jogador tem de construir e gerenciar um parque de diversões. Para se dar bem no jogo, é preciso projetar montanhas-russas, planejar a colocação de atrações de forma relativamente complexa, gerenciar a parte econômica do parque — envolvendo gastos e lucros, incluindo planilhas e gráficos, se quiser — e até mexer no quadro de funcionários, treinando-os para o trabalho, dando aumentos ou os demitindo. Essa complexidade e diversidade pode ensinar muitas coisas aos pequeninos, e, nesse sentido, desenvolver habilidades que eles poderão usar na vida adulta. Até mesmo outros jogos mais lúdicos e fantásticos, como Minecraft, ajudam a estimular a criatividade ao dar liberdade para se mover e construir à vontade, criando formas e deixando a imaginação fluir. Há jogos, também, que lidam diretamente com conhecimentos escolares, como os que tratam diretamente de história — Assassin’s Creed sendo, é claro, o grande bastião do gênero. Apesar do aspecto violento do game, suas últimas edições incluem o Discovery Mode, que transforma a experiência de jogo em um tour pacífico pela época histórica trabalhada, como uma visita guiada a um museu: tudo isso utilizando os incríveis visuais e recriações que a tecnologia atual permite. Outros jogadores, mais interessados por matemática, física ou engenharia também podem se deliciar em obras da indústria voltadas a esses conhecimentos, como Polybridge, que envolve a construção de pontes que precisam aguentar o tráfego, ou Kerbal Space Program, que envolve a construção, gerenciamento e execução de um programa espacial, com viagens à lua e a outros planetas. Claro, eles podem ser mais complexos do que uma criança poderia entender, mas são lúdicos o suficiente para prender o interesse e, com o acompanhamento dos pais, podem se tornar uma atividade bem divertida — enquanto ensinam conceitos de física e afins. Temos, também, exemplos bem concretos de situações em que os jogos têm benefícios diretos na vida das crianças: uma profissão recente é um deles — a de Especialista em Tecnologia de Jogos na Pediatria. O hospital infantil Logan Health, na cidade de Kalispell, Estados Unidos, utiliza jogos eletrônicos para recreação, tornando-os uma atividade terapêutica que faz seus pequenos pacientes se sentirem mais em casa e esquecerem dos traumas e problemas sofridos, ainda que apenas por algumas horas. Jogar em grupo e conversar ajuda na distração e deixa as crianças mais confortáveis, aliviando bastante o clima geralmente pesado de um hospital.

Malefícios dos jogos para crianças

Infelizmente, nem tudo são flores. Os videogames também podem acabar trazendo alguns malefícios para a vida dos pequenos. Certamente a maior das controvérsias acerca dos jogos eletrônicos é a questão da violência — muitos jogos têm como base o conflito físico entre personagens, o uso de armas de fogo ou mesmo cenas perturbadoras, como desmembramentos e decapitações. Jogos muito controversos (e, em alguns casos e países, até banidos) incluem Mortal Kombat, Doom e Call of Duty. Em um artigo bem completo de 2019, o periódico estadunidense Vox entrevistou tanto indivíduos que criticam a violência dos games quanto os que têm uma visão mais crítica sobre o tema, entendendo que o problema é mais embaixo. As conclusões são bem interessantes. O artigo, obviamente, é direcionado para a realidade dos Estados Unidos, onde incidentes envolvendo tiroteios em escolas ocorreram diversas vezes nas últimas décadas, mas vale para o mundo todo — lembrando que, infelizmente, já vimos casos semelhantes no Brasil. A conclusão dos estudiosos é que não, os videogames sozinhos não são a causa da violência e dos incidentes armados nas escolas, mas também seria ingenuidade afirmar que os jogos não têm absolutamente nada a ver com incitações violentas. A frequência da exposição aos videogames pode ser um problema, especialmente no caso de jogos violentos, mas não só eles. O vício em qualquer jogo pode acabar sendo prejudicial, mesmo que seja um inofensivo The Sims. A resposta, como sempre, é mais complexa: no caso dos EUA, há uma cultura de armamentismo e um fascínio com armas de fogo, além do país ter uma cultura psicologicamente tóxica que divide a população entre “vencedores” e “perdedores”. Às vezes, a pressão é tamanha que alguns indivíduos com menos suporte psicológico acabam ficando perturbados e partem para a violência direta — especialmente quando outros problemas mentais já afligem a cabeça da pessoa em questão. Os jogos não são a base do comportamento violento, mas fazem, sim, parte de uma cultura de glorificação da violência. Títulos como Borderlands ou Destiny têm muito de sua publicidade voltada à quantidade de armas e combinações bélicas possíveis dentro de seus jogos, por exemplo. O grande problema é que muitos políticos, seja no país norte-americano quanto no mundo todo, acabam usando os games como um enorme bode expiatório: é muito fácil criticar uma mídia específica e dizer que ela é a culpada de todos os problemas de violência pelos quais a nação passa, especialmente quando o apontar de dedos é feito para uma indústria com pouca influência política. A indústria armamentista, pelo menos nos EUA, tem muito poder de lobby — o que gerou a imbecil decisão da rede Walmart de banir os jogos de suas prateleiras em 2019, enquanto continuavam a vender armas nas mesmas lojas. Infelizmente, por outro lado, a comunidade de jogadores também tem seus extremismos: alguns gamers apenas dizem que os jogos não têm nada a ver com a violência, sem discutir o assunto e reconhecer que, em alguns casos, a influência existe. Além disso, há a questão dos predadores sexuais, que encontram nos jogos online uma chance de interagir com crianças e descobrir dados pessoais — ou coisas piores. Segundo o FBI, agência de inteligência dos EUA, as crianças de 12 a 15 anos estão entre as mais vulneráveis. Nessa idade, os pais já monitoram menos seus filhos e, por vezes, não os educaram o suficiente para conseguir evitar a interação com estranhos na internet.

Crianças podem jogar?

Bem, como você já deve ter notado lendo os parágrafos anteriores, há, é claro, um lado bom e um lado ruim dos videogames para os pequenos. A reposta, no fim das contas, é sim! As crianças podem jogar. No entanto, com supervisão e controle dos conteúdos consumidos. Os pais, é claro, nem sempre poderão estar presentes quando os filhos estão jogando, mas podem tomar algumas medidas que ajudam nesse controle. O FBI dá algumas dicas, como deixar o computador que seu filho usa em um lugar aberto e visível na casa, garantir que seu filho saiba que pode te contar sobre interações estranhas na internet e explicar que ele não pode compartilhar coisas pessoas com estranhos — especialmente online. Também é recomendado saber os nomes de usuário e senhas do seu filho para os jogos e sites que ele frequenta, e informar a criança de que você vai checar essas contas ocasionalmente. Nesse ponto da vida, a segurança é mais importante do que a privacidade. Quanto à questão de idade, é difícil definir quando seu filho estará maduro o suficiente para se aventurar sozinho pela internet — não há resposta definitiva, e ninguém melhor do que os próprios pais para saber isso. Como já citamos, o FBI recomenda atenção especial às idades de 12 a 15 anos, também incluindo, é claro, crianças mais novas do que isso. Outra coisa interessante de se fazer e que, além de evitar a jogatina excessiva, também ensina um pouco de disciplina, é a gameficação de tarefas: ou seja, um sistema de recompensas para seu filho. Você pode, por exemplo, dizer que o pequeno poderá ficar uma hora no computador caso arrume o quarto, e ganhar mais uma hora se fizer as tarefas da escola até um determinado horário, e por aí vai. A grande maioria dos jogos usa sistemas de recompensa por tarefas realizadas — porque não aplicar isso em casa, né? De certa forma, isso também é um jogo. Há até mesmo aplicativos que ajudam nisso, como o Habitica. Quando possível, também, jogue com seu filho! Mostre que essa atividade pode ser saudável e construtiva. Em uma de suas sessões conclusivas, Shaffer traz uma colocação excelente: ele diz que há jogos bons e ruins, assim como há livros bons e ruins — e a única forma de garantir que seu filho esteja lendo um bom livro é ser, você mesmo, alfabetizado, alguém que pode ler e decidir qual livro é o melhor para ele. Se você fosse analfabeto, não teria como saber qual livro é ruim e prejudicial, não é mesmo? Para os pais, então, resta encontrar e conhecer jogos bons e educativos para poder jogar com os pequenos. Os professores podem também, nesse sentido, encontrar jogos que possam trazer uma oportunidade de aprendizado na sala de aula — trazendo games que ajudem as crianças a pensar de formas produtivas, criativas e inovadoras envolvendo as tecnologias e complexidades que as cercam. Shaffer, na conclusão de seu livro, traz a seguinte reflexão: Aqui no Showmetech, temos um artigo que trata inteiramente de história e como ela é representada nos games. Corre lá pra conferir!

Veja também:

Fontes: Vox | Cleveland 19 | The Fairfield Sun Times | David Williamson Shaffer

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